Fabrício de Lima

Idade: 33 Registrado: 28/09/09 Mensagens: 37
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QUEM RI DO QUÊ?
Depois do almoço, que foi mesmo uma grande festa, Ângelo
voltou ao trabalho e Eulália foi dormir sua sesta habitual da
tarde.
Vera, Sílvia e Emília saíram para passear pela chácara com
Irene.
— A senhora tem um jardim deslumbrante, dona Irene! —
comenta Sílvia, maravilhada diante dos canteiros de rosas e
hortênsias.
— Para começar, deixe o “senhora” de lado e esqueça o “dona”
também — diz Irene, sorrindo. — Já é um custo agüentar a Vera me
chamando de “tia” o tempo todo. Meu nome é Irene. “Dona” Irene ou,
pior, “Professora Doutora” Irene, eu cobro só de quem não gosto.
Todas sorriem. Irene prossegue:
— Agradeço os elogios para o jardim, só que você vai ter de
fazê-los para a Eulália, que é quem cuida das flores. Eu sou um
fracasso na jardinagem. A Eulália, não, acho que tem um “dedo
verde”. Basta alisar uma planta murchinha para ela ficar toda
brejeira, verdinha e viçosa. Uma coisa impressionante.
— Foi ela também que preparou o almoço, não foi? — pergunta
Emília.
— Foi — responde Irene. — Eu gosto de cozinhar, mas quando
tem visita, a Eulália não me deixa chegar perto das panelas. Faz
questão de preparar tudo sozinha. A maior glória para ela é quando
alguém louva a comida que fez.
— Parece que a Eulália é mesmo muito prendada — comenta
Sílvia.
— Prendada? Essa é boa! — ri Irene. — Menina, em que século
passado você nasceu?
Sílvia fica corada.
— Para dizer a verdade — prossegue Irene —, a Eulália é um
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poço sem fundo de conhecimento e sabedoria. Todo dia aprendo uma
coisa nova com ela. Só de remédios caseiros, feitos com ervas
medicinais, dava para encher uma enciclopédia. E como conselheira
para momentos de angústia e depressão não conheço melhor
psicólogo do que ela.
— Pode até ser — comenta Emília enquanto as quatro se
sentam [pág. 13] num grande banco de madeira sob um
caramanchão. — Mas ela fala tudo errado. Isso para mim estraga
qualquer sabedoria.
— Eu tive de me segurar para não rir quando ela disse aquelas
coisas na mesa — acrescenta Sílvia.
— Que coisas? — quer saber Vera.
— Ah, sei lá... agora não me lembro — responde Sílvia.
— Eu me lembro — adianta-se Emília. — Ela disse “os
probrema”, “os fósfro”, “môio ingrês”...
— É mesmo — confirma Sílvia —, e a mais engraçada foi:
“percurá os hôme”...
Sílvia ri, e Emília a imita.
Irene fica séria por alguns instantes. De repente, vira-se para
as duas moças e diz:
— Or tu chi se’, che vuoi sedere a scranna / Per giudicar da
lungi mille miglia, / Con la veduta corta d’una spanna?
Sílvia, Emília e Vera, tomadas de surpresa, ficam mudas.
— E então? Não querem rir também do que eu disse, como
riram das coisas que a Eulália falou?
— Mas você falou em italiano — diz Vera.
— Se era italiano, por que devíamos rir? Eu não posso achar
graça naquilo que não entendo — diz Emília.
— E por que você não entende? — pergunta Irene.
— Ora, porque não falo italiano — responde Emília.
— E o que é que você fala? — continua Irene.
— Eu falo português — diz Emília, já intrigada.
— E o que é o italiano para alguém que fala português? — quer
saber Irene.
As moças param um instante para pensar. É Sílvia quem
responde:
— É outra língua.
— Uma língua diferente — completa Vera.
— Muito bem — diz Irene. — Vocês não entenderam o verso de
Dante que eu citei há pouco porque era italiano. Mas e se eu disser
assim: “No mundo non me sei parelha, mentre me for’ como me vay, ca
já moiro por vos — e ay!”?
— Esse quase dá para entender, afinal é espanhol — diz Sílvia.
— Não senhora — corrige Irene. — É português. [pág. 14]
— Português?! — espanta-se Emília.
— Português, sim, só que do século XII, Idade Média — explica
Irene. E que tal alguma coisa assim: “Estou-me nas tintas se não te
apetece uma bola de Berlim”?
— Vai me dizer que isso também é português? — duvida Sílvia.
— Claro que é, é português falado em Portugal. Significa:
“Estou pouco ligando se você não gosta de comer sonho”.
Vera impacienta-se:
— Tia, aonde é que você quer chegar?
— Vocês não entenderam o Dante porque o italiano é diferente
do português. Vocês não entenderam o português do século XII
porque ele é diferente do português de hoje. E não entenderam o
português de Portugal porque é diferente do português do Brasil.
— E o que tem isso a ver com a fala errada da Eulália? —
pergunta Emília.
— A fala da Eulália não é errada: é diferente. É o português de
uma classe social diferente da nossa, só isso — explica Irene.
— Para mim é errado — diz Emília.
— É errado dentro das regras da gramática que se aplicam ao
português que você fala — diz Irene. — Mas na variedade não-padrão
falada pela Eulália essas regras não funcionam.
— Variedade não-padrão? Que coisa é essa, tia? — pergunta
Vera.
Irene dá um suspiro, sorri e diz:
— Essa é uma história comprida, Vera, e não sei se dá para
resumir aqui, no jardim, nesta tarde fria de julho, depois de ter
comido tanto no almoço.
— Mas agora eu fiquei curiosa — diz Vera.
— Eu também — diz Sílvia.
— E eu mais ainda — diz Emília. — Quero ver a senhora... você
me convencer que a Eulália não fala errado.
Irene se levanta e diz:
— Vamos combinar o seguinte. Hoje à noite, a gente se reúne
na sala, acende a lareira, se enrola nuns cobertores e bate um longo
papo sobre este assunto. Por coincidência, eu estou mesmo
preparando um livrinho que trata destes problemas. Vou aproveitar o
resto da tarde para ler um pouco e lá por volta das oito horas a [pág.
15] gente se encontra. Enquanto isso, Vera, leve as meninas para
passear aqui pelos arredores. Combinado?
— Combinado — diz Vera.
— Antes eu quero saber o que foi aquilo que você disse em
italiano...
Irene sorri:
— São uns versos da Divina Comédia, de Dante. A tradução é
difícil, mas significam alguma coisa como: “quem você, tão
presunçoso, pensa que é para julgar de coisas tão elevadas com a
curta visão de que dispõe”?
Emília e Sílvia se entreolham.
— É impressão minha, ou foi uma indireta? — pergunta Sílvia.
— Indireta nenhuma, querida — responde Irene, puxando
Sílvia para junto de si e abraçando-a com carinho. — São uns versos
bonitos que guardei de cor, só isso.
— E aquele português da Idade Média, o que era? — pergunta
Emília.
— São os primeiros versos de uma cantiga de amor — responde
Irene. — Essa cantiga é considerada o texto mais antigo escrito em
língua portuguesa, data de 1189. É tão antiga que até hoje os
filólogos discutem sobre o significado exato das palavras... Mas agora
chega de conversa. Vão passear. Durante o passeio, aproveitem para
pensar na resposta que vocês dariam à seguinte pergunta: “Quantas
línguas se fala no Brasil?” Não digam nada agora. À noite a gente se
vê. [pág. 16] |
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