Paraíso Niilista – O Vazio e o Nada se encontram


 
Seção Poemas
 

saudade

Há quanto tempo não nos enxergávamos!
Olhos nos olhos – e tudo ainda é tão vívido
Lembra quando nos conhecemos
De tudo que fizemos e sonhamos
De todas as solidões em que adoecemos
E que fizemos dela uma cura
De tudo quanto nos parecia problema
Mas era só a vista embaçada
De quando ríamos como crianças
Daquilo que era possível
De quando fim era só uma palavra
Dita por quem não nos importava
De quando os dias perdidos
Eram estarmos separados

Continuamos – e como!
Queimando todos os livros
Comendo o que restava
E cuspíamos um no outro
O néctar da decadência
Era como um presente
Sem que se devesse merecê-lo
Como o mais alto tesouro
Já erigido da lama

Nosso único descanso da vida
Era saber calar ante o insondável
De nossos abismos
Como duas pedras falsas
Que se queriam brutas
Sem valor, sem espécie
Sem nada

Lembra de nossas brigas
De travesseiro
De nossa leveza
Para além de qualquer palavra
– explicações eram incertezas –
O silêncio nos traduzia
Estávamos certos
E sabíamos disso
Pela majestade
Do nosso dia-a-dia
Pela nossa ingenuidade
No mais complexo da vida
(sempre foi simples demais
para nos preocuparmos)
Pelo nosso respeito
Como a dois mestres
E pelo nosso desprezo
Ao que não era alegria
Não era a nossa alegria
Mas aquela baba espumada
Dos dementes da rotina

Agradecíamos à vida
Pelo que não tínhamos nos tornado
E a nós mesmos, pelo que éramos
Cúmplices na alienação mais hedionda
Na blasfêmia mais aterradora
E um abrigo de si mesmo
Quando os mares eram revoltos

Um lampejo dessa felicidade
Minha memória mais sagrada
Que importava aos outros
Os nossos segredos
Nossa impudícia
Nosso escárnio
Nosso orgulho
De viver nessas alturas
           [impossíveis

Que importavam os outros
Bastávamos a nós mesmos
Insuperáveis – sem ideais
Passando por esta vida infectada
Como quem lhe passa ao lado
E nos presenteando
Com todas as riquezas
Que se pode carregar
Dentro de uma alma

Lembra quando nos conhecemos
E agora nos perdemos
No fundo daquela imaginação?
– Não me lembro de nada –
Então, é só isso?
Pois aqui está sua nota
Pague-a no caixa
Volte sempre que precisar
De mais memórias falsas

André Díspore Cancian
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[última atualização: 24/08/2023]
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