É impossível simpatizar intuitivamente com o conselho carpe diem – aproveite o dia, viva como se não houvesse amanhã – dado por aquele pessoal que passou por alguma experiência de quase-morte e agora diz ver o mundo com novos olhos. Não somente porque, do modo impreciso como nos é apresentado, não diz absolutamente nada, mas também porque é efetivamente idiota. Quem estiver com dúvidas quanto a isso, grite carpe diem! num velório. Ademais, ninguém consegue acreditar honestamente que não haverá amanhã – ou agir como se não houvesse – sem um motivo razoável como um acidente, uma bomba ou uma arma apontada à cabeça. Se fôssemos tomados pela idéia de aproveitar o dia como se não houvesse amanhã, provavelmente nos embrenharíamos em alguma patetice suicida da qual, caso sobrevivêssemos, nos arrependeríamos amargamente numa cadeia ou numa cadeira de rodas. Isso é um surto psicótico, não sabedoria. Mas como essa idéia tem vários seguidores, é razoável imaginarmos que deve ter algo de concreto. Como quase tudo em que os humanos acreditam está envolto por besteiras subjetivas e poéticas que nem eles próprios compreendem claramente, nem sempre é fácil chegar ao que é propriamente o objeto da crença, o motivo real de a abraçarem. A maioria abraça a poesia envolvente e ignora o resto, ou seja, aquilo que, de fato, funciona – como quem se sente muito bem ao fazer exercícios sem compreender que o bem-estar vem das endorfinas, não dos movimentos nem do esforço. Aparentemente, o lado funcional dessa sentença está em podar as esperanças para que o peso das expectativas não nos esmague. Olhamos para o futuro e temos a impressão de que não conseguimos ver nada. Isso é realmente triste, mas o problema não é que não enxergamos – conseguimos ver tudo e muito bem, só que esperamos dessa visão do futuro algo espetacular. Como esse algo, naturalmente, nunca acontece, pareceria lógico pensarmos se não estamos equivocados, mas preferimos dizer que somos cegos a aceitar aquilo que vemos. Na dúvida, só precisamos nos lembrar do que enxergávamos quando, no passado, igualmente nos indagávamos sobre o futuro e, também igualmente, víamos à nossa frente essa penumbra cinzenta sem graça que tediosamente nos trouxe até aqui – e disso também nos empenhamos em esquecer para preservar nossas ilusões, repetindo mecanicamente algum chavão sem sentido até alguma ocupação nos tirar essa idéia angustiante da cabeça. Isso desmonta a motivação. O futuro precisa brilhar com alguma diferença cativante, exigimos que essa diferença exista, pelo menos na nossa imaginação, pois a vida não pode ser só essa sucessão despropositada de eventos mesquinhos que cabem na vulgaridade do dia-a-dia. O problema, todavia, é que não só pode ser, como é – e nós diariamente testemunhamos isso, apesar de fecharmos os olhos da alma para que nossa esperança não veja a cena e morra de desgosto. Nutrimos esperanças tolas que nos fazem acreditar que num futuro inespecífico – ao qual estamos caminhando – a realidade do viver vai transmutar-se da constante ansiedade da insatisfação com o presente para um agradável estado de serenidade – aquele dos velhinhos de chinelos sentados nas varandas lendo o jornal – em que o preocupar-se é somente uma opção, não um tormento. E para chegarmos nesse futuro a tempo de aproveitá-lo? Precisamos correr, correr muito – run like hell! Depois de estarmos cansados de correr, começamos a pensar, porque já faz muito tempo, e nunca chegamos a nada com esse desespero encharcado de suor. Aqui entra a questão do carpe diem, não como uma solução, obviamente, mas naquele sentido em que tem um fundamento real que pode explicar alguma coisa. A satisfação ou insatisfação para com a vida está estreitamente vinculada à nossa expectativa. Se esperarmos que o mundo dobre-se de joelhos perante nossa presença somente porque corremos a vida inteira como dementes, isso não é nada senão um fato lamentável. Por exemplo, pensemos num cigarro: ninguém em sã consciência compra um maço e pensa “hei de fumá-los, prazerosamente, um por um, como se não houvesse amanhã”. Por mais que isso soe agradável, não conseguimos extrair dessa idéia nenhuma satisfação – é apenas uma forma poética de dizer algo inócuo. A proposta está em abandonarmos a inocência de pensar que, um dia, sem nenhum motivo, os cigarros serão mais saborosos, o kit jornal-varanda-chinelo possuirá uma serenidade inerente da qual desfrutaremos plenamente todas as manhãs, todo sono será profundamente ininterrupto e, assim, inabalavelmente calmos, conseguiremos, a caminho do trabalho, passar pelos jardins e apreciar com plenitude a beleza das flores e o canto dos passarinhos com aquela morbidez platônica caracterizada pela desatenção de um olhar vago e distante que esboça um sorriso também vago e distante – ignorando totalmente o fato de estarmos vendo isso pela janela do carro, presos no engarrafamento. A vida nunca deixará de nos passar a perna. O cigarro sempre será o cigarro, com suas misturas diversas de fumo que temos de acender com algo e ficar tragando. Se o acendermos pensando que isso nos transportará fantasticamente ao mundo do cowboy do Marlboro onde tudo é uma aventura maravilhosa, podemos somente estar certos de que nos sentiremos perfeitos idiotas depois da terceira tragada. Dotado da mais pura realidade, nosso cigarro vai queimar por alguns minutos, enfumaçar o ambiente, desprender algumas cinzas e transferir ao nosso corpo um bocadinho de nicotina. Isso é tudo. Entretanto, quando, mesmo assim, não nos damos por satisfeitos com os resultados e, por algum motivo mirabolante, insistimos que na verdade precisamos fumar vinte vezes mais fazendo certa pose para vivenciarmos o verdadeiro resultado Marlboro em toda a sua intensidade, só podemos supor que nosso futuro não será algo muito diferente de uma infelicidade carcinogênica. Desaprender a infância é a desilusão essencial da vida. O mundo não é um lugar mágico, é um lugar físico: não vai lhe dar presentes gratuitamente para ver seu sorriso, e seu sofrimento não vai compadecê-lo absolutamente, tampouco lhe dar o direito de exigir ressarcimento por seu infortúnio. Não nascemos para sermos felizes, e isso é um fato. Nossa felicidade é um objetivo nosso, não do mundo – se isso fosse o objetivo primordial da existência, nasceríamos felizes e morreríamos contentes na própria maternidade. O segredo todo está em saber lidar com essa situação sem exigir que um mundo impessoal nos trate com a gentileza que sentimos que merecemos somente porque somos vaidosos, egocêntricos e acreditamos nos elogios dos outros – alguém já recebeu um elogio do ser-em-si? Se pegarmos todas as experiências e sensações que já tivemos e as considerarmos honestamente, como realmente foram – e não como as contamos aos outros tentando impressioná-los sobre como nossa vida é melhor –, perceberemos que, se não predeterminarmos que o mundo deve manifestar uma perfeição proporcional à nossa sensação metafísica de importância, não haverá tanta frustração em acender o filtro do cigarro e ficar com um gosto horrível na boca, não acharemos que o mundo é um caos porque o pneu furou, porque o café está frio e sem açúcar, porque a energia elétrica acabou, porque um amigo morreu etc. Se comprarmos uma obra de arte milionária e, embriagados pela estética magnífica, fizermos o furo na parede onde passa o encanamento de água, seremos lembrados que as paredes não ligam para a arte nem para nós. Acharmos que tais coisas não podem – ou não deveriam – acontecer só prova que estamos nos comportando de um modo completamente estúpido, fazendo todo o esforço do mundo para ignorar a realidade – ora, isso acontece o tempo todo, todos os dias. A vida sempre será isso que, com justificável desprezo, chamamos de presente. Não adianta negar esses fatos evidentes, inventando que, se tivermos filhos – ou realizarmos qualquer sonho – a vida virará do avesso e nos servirá de bandeja até nos darmos por satisfeitos e dormirmos numa lápide de granito. Em essência, depois de satisfazermos um sonho, a única coisa que teremos será um sonho a menos e, se isso nos parecer perda de tempo, então ao menos admitamos que nossos sonhos são sem sentido, e que não servem para nada além de povoar um mundo poético cuja única função é perpetuar um auto-engano vitalício. A saída lógica desse problema é simples: esperar que aconteça o que de fato acontece – em vez de passar a vida inteira resignado como uma vítima desse mundo real, material, cruel e injusto do qual seremos redimidos por um fator externo miraculoso que incorpora todos nossos desejos não-realizados como, por exemplo, a prometida segunda volta de Jesus, nos recompensando com bem-aventurança por termos vivido ansiosamente como imbecis sem rumo. Quem achar isso uma blasfêmia ridícula de um ateu imoral, então, para variar, abra sua Bíblia e leia o Evangelho com atenção, e verá que o reino dos céus não é apresentado como um lugar real para o qual ganhamos um bilhete de entrada depois de batermos as botas como bons cristãos, mas um estado de espírito, um modo de encarar a realidade. É claro que isso não implica que os valores cristãos sejam dignos de qualquer consideração séria – pois essa coisa chamada cristianismo já está mais vazia que a caixa de Pandora –, mas que a idéia de que seremos satisfeitos e recompensados depois da morte é tão infantil que ninguém consegue acreditar nela na prática – alguns podem dizer que acreditam, gritar que acreditam, se flagelar e jejuar para tentarem provar aos outros que acreditam; mas se acreditassem mesmo, do fundo de suas almas, quando sofressem um acidente, chamariam um padre, não a ambulância. O homem é só um pobre mamífero jogado nesse mundo absurdo sem entender bulhufas do que está acontecendo; um mamífero sem sentido que precisa de sentido; que, como qualquer outro, é cheio de necessidades, impulsos, sentimentos, desejos e expectativas que serão frustrados frequentemente; cheio de idéias, teorias e crenças nas quais muito se mostrará errado; cheio de angústias, dores e misérias que serão consistentemente reais. Portanto, no que consiste o bocado de realidade que a idéia do carpe diem abriga? Pessoalmente, preferiria resumir como não use somente o cérebro, mas também os olhos. Mas uma conclusão mais polida e útil é esta: o significado real não é aproveite o dia como se não houvesse amanhã, mas pense o dia como se já fosse amanhã. Isso claramente soa mais inspirador, pois resgata o que há de real nessa postura, mas em nada alivia nosso sentimento de insatisfação com o presente – nem deveria. Eis a condição humana. Carpe this crap. |