Diante de toda a perplexidade envolvida no fato de existirmos sem razão num mundo desgraçado e de que isso, em regra, significa ser infeliz e sofrer gratuitamente, os que fogem dessa questão como covardes dizem corajosamente aos que dela se ocupam: por que você não se mata? A pergunta, naturalmente, tem sua razão de ser; todavia, façamos uma pergunta um pouco mais interessante: por que você se reproduz? Primeiramente, vejamos a questão do seguinte modo: aquilo que, no presente, constitui nossos corpos já esteve zanzando pelo universo há pelo menos quinze bilhões de anos, e dificilmente encontraríamos alguém levantando queixas a esse período de inexistência. Por outro lado, essa mesma matéria, depois de se transformar em um homem, em poucas décadas já acumula dores suficientes para encher todos os hospitais e clínicas psiquiátricas do mundo. Se o universo fosse autoconsciente, a única conclusão possível seria a de que ele se detesta. Mas as únicas coisas conscientes, até onde se sabe – e até certo ponto –, somos nós, que acreditamos, por uma espécie de tradição demente, que deve haver uma gloriosa próxima geração, a qual será a feliz herdeira e vítima de nossa inconsequência asinina. As razões para esse esquema de mau gosto se instalar com tamanha naturalidade são óbvias, e estão explicadas em qualquer livro de biologia básica; ou seja, como toda espécie, somos programados para nos perpetuar, cuidar de nossa prole e depois voltar ao pó com uma sensação impalpável, quase convencional de dever cumprido. Pois é claro que, se dependêssemos apenas de deliberações racionais para garantir nossa perpetuação, poderíamos nutrir a benigna esperança de ver a vida caminhar à extinção com um sorriso sereno e confiante. Todavia, a questão encontra-se estrita e ardilosamente vinculada ao maior referencial de prazer: sexo; ou seja, um engodo criado pela natureza com tamanha monstruosidade e perfídia que deixaria o próprio diabo parecendo um amador quando o assunto é levar os indivíduos a realizar maus negócios. Essa isca, por si só, é tão eficiente que prescinde de qualquer necessidade de incentivo, de qualquer justificação lógica para a reprodução, pois apela ao que há que mais básico e enérgico em nossa natureza. Portanto, a animalidade humana é o que responde pelos motivos tortuosos da procriação, e isso praticamente sem qualquer intermédio da razão, já que seu poder de persuasão sobre um macaco excitado é mais nulo que o horário político. Não obstante, quando, por uma sensatez milagrosa, a razão tem a oportunidade de proferir algumas palavras prudentes a esse respeito, quase nunca são em favor, mas explicitamente contra, sugerindo métodos contraceptivos e narrando histórias horripilantes sobre noites insones regadas a berros, leite e excrementos, cujos protagonistas posteriormente evoluem ao estágio de parasitismo e aí ficam até que o cordão monetário seja cortado. Todavia, contrariando tudo que toca o bom-senso, vejamos os motivos que normalmente se apresentam em favor da procriação intencional. Certo indivíduo, depois de ter sido amaldiçoado pela geração anterior com a condição de ser vivo, começa a sentir certo vazio em sua existência. Supondo as circunstâncias mais favoráveis, nasceu em uma boa família, teve educação, formou-se na área de conhecimento de que mais gosta, conquistou respeito profissional e independência financeira, casou-se com sua amada, comprou a maioria das coisas que desejou, visitou os lugares mais curiosos da terra. Em suma, já buscou no mundo toda espécie de felicidade, cumpriu os objetivos que sonhou para si mesmo; não obstante, continua insatisfeito com sua condição e sente-se um desgraçado. Começa a desconfiar que a marcha do mundo é uma piada de mau gosto, mas nega-se a confessar isso para si mesmo; continua a buscar alguma solução exterior para sua infelicidade interior. Procura alívio desesperadamente, seja em amizades, jogos, esportes, extravagâncias, festas, sexo, drogas; porém, na manhã seguinte, sente a realidade sussurrar-lhe ao ouvido seu fracasso. Continua apertando-lhe o peito a sensação de que algo falta e, depois de muito pouco pensar, lembra do dito: escrever um livro, plantar uma árvore e ter um filho. Como sabe que os dois primeiros feitos são mentiras palpáveis, ignora-os com a mesma lógica que deveria fazer-lhe rir ainda mais do último. Mas, por meio de algum raciocínio coxo, como, por exemplo, “se não for isso, o que será?”, convence-se rapidamente de que a solução para suas misérias está na procriação; daí em diante limita-se a devanear sobre quantos deleites se seguirão à equação ejaculação + nove meses = felicidade. Pois bem; tem um filho e, inocentemente, lança suas pragas sobre o pobre-diabo. Obviamente, o faz com a melhor intenção, sonhando com um futuro brilhante e cheio de alegria para sua prole. Não imagina que o mesmo impulso cego que o levou a lutar pela conquista de uma vida estável – que continua insípida – agora o leva, como o desfecho de sua comédia, a perpetuá-la simplesmente porque não consegue suportar o tédio e a frustração de isso tudo que conquistou não haver servido para absolutamente nada. Desde sempre, o tempo todo, seu desejo foi apenas fugir de si mesmo; porém, agora, o faz projetando no horizonte da geração seguinte o cumprimento de seu projeto de vida. Com isso resigna-se de sua tão sonhada, profunda e estupenda felicidade pessoal que haveria de vir inexoravelmente e passa o bastão adiante, pensando que com isso está fazendo o que há de mais nobre sobre a terra. Diante de um raciocínio tão lamentável, é justo que a natureza tenha colocado o amor paterno como uma espécie de indenização biológica para com o inocente que acaba de surgir no mundo sem que tenha feito coisa alguma para merecê-lo. Pensemos a questão da perspectiva da matéria inanimada que está prestes a se converter numa máquina humana movida a moléstias e carências. O que um punhado de átomos tem a ganhar ao se tornar um ser vivo? O mesmo que levou os vivos a fugir de si mesmos; ou seja, angústia, tédio e dor – todos mascarados por detrás de sonhos magníficos que inevitavelmente culminam em desilusões; o trabalho de buscar uma felicidade irrealizável pelo custo de mil penas e mil perigos para, no fim, nada. Considerando que o centro do universo é o umbigo de cada qual, abdicar de sua própria vida para criar outra é a admissão escancarada da própria incompletude do viver, da impossibilidade de realizar-se plenamente por si só, de que mais valeria que nunca ter existido. Mas esse doloroso silêncio que ruma à extinção é algo que seu orgulho não pode admitir; consciente de seu elevadíssimo valor, não pode privar o mundo de seu legado, de alguém que continue no cargo de seu empreendimento tão falido, na manutenção de sua condição insustentável; assim sendo, lança no porvir uma esperança tão capenga e vesga que mais parece uma vingança – mas isso é algo que há de ecoar por toda a eternidade como testemunho de sua profunda imbecilidade. Como se pode verificar cotidianamente, a maioria dos indivíduos é dotada de uma visão tão curta e de um egoísmo tão irrefreável que sequer pensa na possibilidade de que o outro indivíduo, criado a partir do nada, a despeito das melhores intenções, será tão desgraçado quanto ele próprio. Não enxerga, sequer desconfia do grau de crueldade envolvido no ato de transformar uma poeira que esteve morta por bilhões de anos em um ser vivo simplesmente porque se encontra insatisfeito com sua própria vida. Portanto, em vez de sentir orgulho, com justiça deveria ser acometido de um profundo e pungente remorso pela perversidade, pela covardia que acabou de cometer contra o que há de mais inocente – o nada. Talvez, depois de algum tempo, quando seus filhos deixarem de ser apêndices dele próprio e se tornarem seres independentes, chegue a compreender que não fez senão multiplicar a dor que há sobre a terra. É verdade que, por vezes, se amargura sinceramente quando vê sua cria sofrendo no turbilhão do mundo, mas esconde no fundo de seu coração a culpa de ser ele o único responsável por isso; culpa o mundo, inventa mil explicações sobre a necessidade de aprender com os próprios erros para se tornar um homem feito, mas nunca se põe honestamente a questão de que o verdadeiro erro foi a multiplicação da dor que causou. Compreender que nada merece a punição de nascer neste mundo miserável constitui a verdadeira lição a ser aprendida com a vivência. Assim sendo, sua própria experiência de vida – da qual paradoxalmente se orgulha tanto e que tenta passar ao seu filho como se valesse algo além de um tímido pedido de desculpa velado – deveria tê-lo levado a concluir que ele próprio não é mais que outro erro causado pela incompreensão da patética condição humana, algo que, ao menos por uma mínima compaixão, deveria ter feito com que parasse nele. Entretanto, esse tipo de consideração jamais passa pela cabeça da maioria dos indivíduos, nem mesmo quando recebem à cara um não pedi para nascer – algo que deveria fazer com que se cobrissem de vergonha por um ato tão mesquinho, tão ridículo quanto tirar da matéria inanimada a paz que eles próprios almejavam ao cultivar o sonho de ter um filho, ignorando que isso só pode ser alcançado com a morte, com o fim dessa lamentável sucessão de eventos tragicômicos que denominamos vida.
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