Paraíso Niilista – O Vazio e o Nada se encontram


 
Seção Reflexões
 

tédio

Há necessidades que possuem realidades por detrás, como a fome, a sede, o sono, a respiração; e há necessidades que são representações de realidades, como o sexo, a amizade e o lazer. A fome, por exemplo, não pode ser driblada em circunstância alguma, pois ela reflete uma necessidade real; nossos corpos não funcionam sem energia; não há sequer sentido em considerar a possibilidade de vivermos sem nos alimentar. Então, mesmo se suprimirmos o sinal da fome, vivendo num agradável estado de constante saciedade, eventualmente morreremos de inanição. Agora pensemos nas necessidades que são meras representações. Se suprimirmos o lazer de nossas vidas — ou o sexo, ou as amizades —, de tal forma que essa carência não seja sentida por havermos suprimido esse sinal — como fizemos com a fome —, não haveria quaisquer consequências. Nessa situação, com tais necessidades satisfeitas, viveríamos com a sensação de que somos turistas, e nunca nos ocorreria pensar que talvez precisássemos de lazer; igualmente, não faríamos sexo porque já nos sentiríamos sexualmente satisfeitos o tempo todo. Então, se já vivemos satisfeitos, que falta tais coisas fariam? Nenhuma, pois não são necessidades de fato — pelo contrário, são necessidades que o próprio cérebro cria, e que o próprio cérebro decide quando foram satisfeitas. Assim, do ponto de vista biológico, talvez possamos entender tais necessidades metaforicamente, pensando nelas como a fome de um organismo que na verdade não precisa comer, mas mesmo assim almoça todos os dias a fim de socializar-se durante as refeições; ou seja, são estratégias que nos trazem benefícios indiretos, mas que em si mesmas são vazias — algo próximo de rituais. Pois bem, a conclusão é que o homem não tem necessidade real da sociedade, pois poderíamos, por exemplo, morar sozinhos num campo, vivendo daquilo que plantamos. Do ponto de vista físico, trata-se de uma vida perfeitamente autossustentável; se essa seria uma vida emocionalmente agradável, isso é outra questão. Mesmo assim, se houvesse comprimidos supressores de sociabilidade, como há supressores de apetite, o fator emocional estaria resolvido por completo, sem quaisquer riscos envolvendo uma possível inanição emocional. Segue-se que, do ponto de vista do indivíduo particular, a forma como alcançamos essa satisfação é puramente arbitrária, e isso pelo simples fato de que nossa necessidade de socialização é apenas uma representação — claro que com base genética, mas mesmo assim uma representação, pois tudo ocorre no cérebro, e nele apenas. Tendo isso em mente, podemos concluir que, exceto em seus primeiros anos de vida, o homem não precisa da sociedade, não literalmente. Desse modo, se não há uma necessidade literal da sociedade, por que as pessoas buscam a socialização? Para satisfazer algum tipo de carência, evidentemente. Tentemos ilustrar a ideia com uma visão prática. Imaginemos que estejamos nos sentindo solitários. O que isso significa? Nada; uma sensação de mal-estar qualquer; uma angústia. Pois bem, saímos à rua, conversamos com alguns conhecidos, e eventualmente passamos a nos sentir bem. O que isso significa? Nada; uma sensação de bem-estar qualquer; um prazer. Imaginemos agora que, em vez de sairmos em busca de companhia, houvéssemos ido ao cinema sozinhos. Sentamo-nos na poltrona por duas horas, assistimos ao filme, e eventualmente passamos a nos sentir bem. O que isso significa? Nada; uma sensação de bem-estar; um prazer. Idem se houvéssemos nos sentido bem lendo um livro, praticando exercícios ou nos distraindo com uma atividade qualquer. Nessa situação, podemos perceber que nossa satisfação na verdade não depende das pessoas em si, mas meramente o fato de elas se prestarem como um objeto do qual possamos nos ocupar, assim como podemos nos ocupar de livros e filmes. Então, se temos essa necessidade de nos ocuparmos, pessoas são um meio, filmes e livros são um meio. Se temos amigos inteligentes porque gostamos de debater ideias, e se livros nos dão esse mesmo prazer intelectual, dá no mesmo se usamos livros ou amigos. Será inevitável pensarmos que, apesar de funcional, essa é uma visão destituída de significado; mas a falta de significado é uma ideia com a qual já deveríamos estar familiarizados: significados são crendices. O fato é que nossas necessidades sociais são todas puramente psicológicas; então, se pudermos satisfazê-las sozinhos, a solidão se revela uma possibilidade perfeitamente tangível e emocionalmente equivalente à socialização, não uma segunda opção miserável. Socializar-se é ocupar-se de pessoas, e gostamos disso não pela companhia, mas pelo alívio do tédio, que é exatamente o mesmo prazer que intelectuais encontram na reflexão — razão pela qual ambas as coisas tendem a ser mutuamente exclusivas. Desse modo, desde que tenhamos inteligência suficiente, a intelectualidade apresenta-se como um ótimo meio de nos esquivarmos de uma das torturas que mais atormentam a humanidade. Ademais, sabendo que o tédio torna a passagem do tempo extremamente lenta, eis um bom critério para sabermos se dispomos de forças intelectuais suficientes para assegurar uma existência plena por meio da reflexão: quanto menos conscientemente sentirmos a passagem do tempo ao nos dedicarmos à intelectualidade, maior é nossa inteligência. Se reflexões filosóficas nos aborrecem, encontremos, de acordo com nossas capacidades, outro modo digno de tornar a existência suportável. Porém, se as horas voam enquanto pensamos, sejamos gratos: recebemos da natureza um presente inestimável.
André Díspore Cancian
2009
 
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