O que nos faz passar a gostar da vida depois de escapar da morte por um triz? O que muda quando sofremos um acidente? Objetivamente, nada; porém, subjetivamente, somos reduzidos, num instante, de deuses a mendigos. Completamente indigentes, o instinto de sobrevivência nos faz implorar e agradecer por qualquer migalha. Quando sobrevivemos, tal experiência faz com que nos sintamos felizes por qualquer coisa que nos reste, mesmo que não reste coisa alguma. O simples fato de estarmos vivos parece nos ter sido dado como um presente, como uma reafirmação do valor da vida. Percebemos nossa impotência diante da enorme quantidade de males que podem nos acometer. Ficamos imensamente gratos pela segunda chance que recebemos, e queremos aproveitá-la ao máximo. Antes éramos arrogantes; agora tornamo-nos humildes, gratos por qualquer lixo que tenhamos em nossas mãos. Todos conhecem o velho ditado de que não valorizamos uma coisa até que a tenhamos perdido; é exatamente esse o caso. Isso acontece porque nunca valorizamos a própria coisa em si mesma, mas a ausência de sofrimento de que desfrutávamos até perdê-la. Não o amor, mas a dor nos faz valorizar o objeto perdido. Nessa ótica, passamos a valorizar a vida não porque esta tenha algum valor intrínseco, mas porque fomos confrontados com a morte que, biologicamente, equivale a uma dor infinita; é uma espécie de lição de moral biológica. Esse erro de cálculo óbvio nos leva a crer que, diante da vida, o valor das demais coisas é ínfimo; tornamo-nos humildes porque já possuímos o maior dos tesouros batendo em nossos peitos. Todas as emoções envolvidas no acidente fazem parecer que se trata de uma espécie de conversão religiosa; não é nada disso. O fato é que continuamos a viver, porém com essa ótica de mendigos traumatizados. |