Paraíso Niilista – O Vazio e o Nada se encontram


 
Seção Reflexões
 

um joe

Você tem horas? – Sim, mas ninguém gostaria delas. Toda vez que retrocedo, vejo o passado se insinuando em meu presente como se tivesse o direito de ser futuro. Que petulância há na felicidade plagiada dos clichês com que a memória se apresenta, sua maquiagem de horizonte e um sorriso falso com dentes emprestados da esperança, a mesma com que o futuro se pavoneia em nossos devaneios para merecer um passo. Mas não é conveniente me delongar, e foi mais um passo, informar à sombra humana que se apresentava diante de mim uma reprodução verbal dos dados que o relógio apontava. Uma convenção muito interessante, penso. A vibração de um cristal, um grilhão antenado nas correntes, ambas as definições são dignas de algum apreço. Estendi o braço com ao alcance da visão daquele vulto. Preferi assim. Há muitas chances de a comunicação não vir a ser eficiente se a contaminar com arredondamentos que facilitam a dicção; ao mesmo tempo cria uma atmosfera formal em que não há muita margem para se dizer algo além de uma futilidade fática de despedida, o que me levou a reconsiderar o que estava a  fazer na esquina da praça numa hora em que se dorme. De fato, não fazia nada no sentido em que se move sua carcaça para uma direção, a serviço e na promessa de uma performance aos diretores de minha comédia, que consiste em mover as pernas e os braços em direções aleatórias, que tem valor porque o script lhes dá uma finalidade. Ou seja, não fazia nada lá, pelo menos nada que interessaria um piolho que fosse fã do meu sangue. Acendi um cigarro no vento com um gesto viciado de quem tem todo o tempo a perder e não perde nenhum. Um caminhão de frutas não é algo raro, mas três significam algo. Uma feira onde se compra frutos de trabalho não-alienado. Segui o cheiro de azedume das que ficam por baixo. Bati a cinza do cigarro e não vi. Foi estranha a sensação de ser soterrado de pedras coloridas para a nova calçada; isso não estava em meus planos; esbocei um sorriso pelo fim ser tão impensado. Mas todo sonho acaba no começo do sonho da vida. O ruído repetitivo e incômodo das gotas me acordou. Alguém visivelmente preocupado com meu estado esboçava felicidade em ver meus olhos abertos, como se tivesse planos para eles. Não o culpei por sua ignorância. Presumivelmente, só queria se ajudar imaginando o que seria me ajudar, o que me colocava numa posição proveitosa, com um empregado voluntário a meu serviço por alguma abstração moral que provavelmente o fazia bem, mas incluía algumas restrições que não me seriam muito bem-vindas. Então tive de lembrar dos sintomas que deveria descrever ao tipo de indivíduo limitado por escrúpulos morais. Mostrei meus dentes e apertei o peito, muita dor física. Dores psicológicas os fariam ocupar minha consciência com explicações e consolos nos quais nem eles próprios acreditam. Isso imediatamente despertou uma reação no indivíduo, que acrescentou ao soro o efeito que desejava. Dormi pensando em como sou um idiota. Acordei entediado. Simulei mais dor. Estava ficando divertido. Ganhar sedativos nunca faz mal. Despertei mais tarde, e não ouvi barulhos ou ruídos de humanos atrás de detalhes que os fariam rir, se tivessem algum senso humor. Liguei a televisão. Havia um homem frenético dizendo que deveria me arrepender e seguir os passos de um pop star, mas decidi seguir ao próximo canal. Vendas. Compre agora ou não será feliz. Se ouvisse algo do gênero pessoalmente pensaria estar num manicômio, mas ao contrário de pessoas felizes, aparelhos eletrônicos calam a boca facilmente. Pensei em ler; parecia improvável encontrar algo naquela hora, mas quando alguém quer ler até os zumbis da noite se mostram prestativos, ou foi o que usei para justificar minha decisão. Ainda não estava lúcido, mas o marasmo rondava pelas janelas e pelas sombras, e adivinhava que não tardaria muito. Desci da cama. Isso me lembrou que a gravidade é muito eficiente. Fiz uma inesperada doação de sangue ao chão, e o custo foi um nariz quebrado. Como não senti dor, tudo bem. Ninguém estava vendo, e não me incomodariam se não estancasse o sangue. Amanhã alguém limpará. Levantei somente o peito do chão. Desisti e me lembrei novamente da palavra de sabedoria que há muito havia encontrado abrigo em meu cérebro. De fato, sou um perfeito idiota. Nenhuma criança ganha doces sem que haja algo amargo sendo ocultado, do contrário apressariam sua recuperação e lhe colocariam na enxada novamente. Pensei que se isso acontecesse um dia, viria me atormentar um terrível sentimento de impotência. Como quase tudo que pensei por antecipação, estava errado. Mais um daqueles sonhos de intensidade que imaginava poder viver, e não podia, nem na desgraça. Desconfiei que havia algo de errado com a pintura do armário. Depois de algum tempo fitando-o, nota-se. Ele era envernizado, originalmente feito para a mobília de salas, coberto por uma camada vagabunda de tinta sintética branca. Concluí isso porque não tinha mais nada para fazer, e sedado pensa-se em tais detalhes. Tudo sempre é mais simples que belo. A fonte de minha angústia havia se encontrado com uma situação pelo menos aprazível. Tornara-me um inválido físico, algo que realmente alimentava minhas elucubrações de solidão. Como se aquelas pedras tivessem quebrado minha metade engrenagem. Uma metáfora sempre deixa as coisas claras. Meu desejo de desaparecer ou de me enfiar em um canto da existência onde o farol do enfado não me ofusque foi acalmado diante das novas possibilidades. De agora em diante, não seria somente um homem. Seria um parasita, e teria orgulho disso se tivesse sido um plano. Esperei, ansioso, pelo dia de sair. Ocupei meu tempo aprendendo a manejar minha cadeira e na sala de leitura; quanta inutilidade espremida num lugar tão grande; até um saco de vômitos contribuiria para elevar o nível. Recebi alguns papéis notificando as condolências oficiais da empresa que sugou minha vida por anos e a sua disposição de oferecer uma pensão por tê-la servido tão fielmente. Eram homens de honra. Essa mentira vende bem. Depois do período de adaptação física e de ler todas as instruções sobre como ser um inútil conformado, fui considerado apto a empurrar minhas rodinhas na sociedade livremente. Teria alta desse azucrim. Fiz uma ligação, notificando meus parentes que poderiam me ver amanhã. Aguardei algumas horas e um táxi me buscou. Apesar de toda a nauseante auto-ajuda que tive de ler na reabilitação, havia afinal alguma informação útil naquela sala de leitura. Escolhi alugar um quarto em um condomínio dentro do perímetro urbano. Gostaria de algo no segundo ou terceiro andar, mas não havia elevadores. Também seria difícil ver o que havia por perto, meus olhos não teriam altura suficiente, e olhar o horizonte não seria um começo promissor para um eremita aleijado. Mas vi algo que interessou minha imaginação, uma papelaria. Comprei um bloco de notas, uma lapiseira, uma borracha, uma caneta, purpurina prateada e um pouco de linha. O caixa me encarou com uma compaixão irritante, comovido pela minha aparente deficiência também mental, provavelmente devido aos meus resmungos lacônicos. Perguntou se era artista plástico ou escritor. Não parecia enxergar um palmo além da migalha que encerrava entre os ouvidos. Disse que era apenas terapia ocupacional; deixá-lo irritado seria uma bondade na qual não estava interessado. Finalmente encarnou o espírito do bom-senso e fez sua lição matemática, me entregando o troco. Saí com o mau humor alimentado e esqueci o que ia lhe perguntar. Passei por um açougue e comprei um pouco de carne, estava em promoção, provavelmente também em decomposição; como havia uma churrasqueira do condomínio, ao menos meu jantar estaria garantido, e com isso meu sono. Um cachorro sarnento que estava na porta do açougue me olhou fixamente. Queria alguma companhia para pensar; joguei-lhe um corte e ele se mostrou afeiçoado. Cachorros não são os melhores amigos do homem, apenas cobram menos pelo aluguel. Parei, é claro, diante da paisagem que vi. Uma oficina para a máquina humana. As de decoração clara parecem santuários. Entrei e disse que meu cão estava com defeito; precisava curar sua sarna. Como o atendente parecia constrangido com minha petulância de entrar com um cachorro doente na farmácia, peguei uma caixa do remédio da prateleira e perguntei o preço. Era caro, mas comprei; também um pouco de fungicida e analgésicos a gosto; mesmo com meio corpo funcionando, minhas dores insistem em se manifestar na central do mal-estar. Finalizei a compra do dia com um pacote de cigarros e um de fósforos; também gosto de sua fumaça. Cheguei ao condomínio, onde me informaram que não era permitido adentrar com o animal. Mas indaguei-lhes como poderia proceder em meu dia-a-dia sem meu cão adestrado, aconselhado pelo médico por viver sozinho. Pareceram satisfeitos com a explicação; provavelmente só queriam uma desculpa caso algum condômino reclamasse. Estava cansado; os olhares eram todos diferentes; meus braços mereciam um troféu por fazerem tudo com aquela linha muscular que lhes sustentava. Teria de me acostumar. Primeiro dia livre depois da morte de meus sonhos; progressos notáveis. Estava começando a apreciar a vida. Acendi a churrasqueira, joguei as carnes e fiquei olhando as brasas enquanto pensava se tudo iria dar certo. Seria mais difícil que o normal; muitas coisas básicas faltavam; nunca tinha me defrontado com aquele tipo de situação, mas achei que era possível superar os impasses. Ao final do jantar, cheguei à conclusão de que a carne realmente era boa; não estavam me enganando. Abri os pacotes, peguei cinco cigarros para fumar antes de dormir, na piscina. Parecia deserta; nenhum urubu me incomodou durante a refeição, presumi que não me incomodariam na piscina. Subestimei a estupidez noctívaga. Uma velha decidiu descontar sua insônia em mim, descarregando filantropia ao me conduzir para longe da piscina alegando que poderia cair e morrer afogado. Gentileza da vizinhança. Retribuí com um sorriso sardônico e agradeci a atenção. Fui até meu quarto para prestar alguma atenção no que ia dormir. Um armário velho, uma mesa velha e uma cama velha. Coloquei os pacotes na mesa. Abri a compra, organizei tudo como gostava, o lápis e a caneta à direita, a borracha à esquerda, o bloco de notas ao centro e o que não fosse isso ficaria no centro, acima do bloco, até ser usado ou ter outro local mais apropriado. Era um vício ser tão detalhista, mas as coisas funcionam melhor assim. Fui dormir. Sonhei que ainda trabalhava, um dia antes de me aposentar, com muitos planos para os dias que me restavam. Isso me acompanhava desde que ingressei na carreira profissional. Pensar em passar por ela, e pensar no que faria depois, depois. Segundo dia depois da morte de meus sonhos. Acordei com o cheiro de excremento me irritando o olfato. Realmente ótima a idéia de deixá-lo dormir dentro do quarto. Aprontei minha barba, fumei um cigarro; parecia que um rato havia dormido em minha boca, o hálito realmente estava podre. Fui ao banheiro e joguei água nos olhos. Li as informações que constavam nas embalagens e supus quais seriam as proporções adequadas para o caso; coloquei o remédio de sarna, o fungicida e a purpurina no cachorro. Escrevi meu nome nele com a caneta. Não ficou muito bonito, mas o tornava identificável. Improvisei uma coleira com o resto da linha e parti para meu segundo dia. Fui até o açougue e comprei mais carne. Alimentei o cão, que estava ficando mimado; para mim, café e uma fatia de bolo. Desci algumas quadras, comprei um chapéu bonito que vi na vitrine de uma loja de calçados. Realmente estava com um certo estilo em minhas manobras, e o chapéu as deixou mais elegantes. Fui até o ponto de táxi, me despedi e abracei meu amigo canino de modo precisamente caloroso; ficou exasperado, mas quem daria atenção a um cão sarnento ganindo. Calculei que a essa hora já haviam passado pelo hospital, com explicações e consolos nos quais nem eles próprios acreditam. Pedi ao taxista que me conduzisse até aqui. A caminho, pude ouvir um som grave e abafado, e imaginei as vísceras do animal espirrando nas vitrines. Acho que entenderão. Uma metáfora sempre deixa as coisas claras. Até a rodoviária, foi rápido. Voltar também. Não tinha nada a fazer por lá, seja qual fosse meu destino. Deveria ser alguma besteira sussurrada pelos comerciais que havia se afixado em meu cérebro sem consentimento. Estava apreensivo pelo acaso ter apagado a linha que me conduzia ao féretro de um modo previsível e socialmente aceitável, e como suicida homeopático não conseguia configurar uma liberdade compatível com escolhas. Decidi reescrever o fim de minha patetice. Nunca me senti incomodado por estar em lugares pequenos, mas neste momento os pregos que sustentavam a tela em que a vida se projetava afrouxaram-se. O passado e o futuro se contraíram num único ponto, a própria besta animada que resolveu pular da tela antes que não conseguisse mais respirar. Rotina sem veneno não era minha idéia. E me perguntava por que tudo deveria fazer sentido. Nada precisa ter sentido, por isso tão rapidamente quanto inventaram os aceleradores, também inventaram seus breques, suas direções, suas marchas, e depois que quem ficava lá em cima dando ordens era o chefe, a abstração de olhos ofuscantes que deixa os homens deprimidos e os filósofos sem resposta; a mesma que deixa crianças inquietas quando exterminam o último chefe do jogo; a tela preta, às vezes mal-interpretada como falta de imaginação dos projetistas, pela qual empenhavam tanto tempo em descobrir a charada e depois tinham de quedar-se insatisfeito nos balcões esperando a revista com os novos lançamentos. Colocado à parte da manada antes do tempo, não me restava muito a fazer, senão ensinar-lhe as notas da minha música. Excetuando-se o detalhe de que nunca me ensinaram a compor, era tudo que precisava, ou que deveria precisar caso não precisasse de nada e me faltasse a criatividade dos projetistas de entretenimento. As essências do além-mundo provavelmente também se espichavam neste ponto para encobrir a escuridão, mas não eram muito eficientes em me cativar desde que me conheço, mas nem por isso perderia meu tempo atacando o ganha-pão dos teólogos. A única mão que se estendia à minha esperança estava algemada pelo resto de sanidade que consegui guardar ao longo dos anos automáticos. Sem esse tipo de mentira, o tédio também seria triste – ambos aliados mereceriam um suicídio por parte de qualquer pessoa sã. O problema não é a falta de ocupação, mas a falta de paixão que redecora tudo em tons cinzas. O desapontamento, a desesperança em qualquer meta, depois de toda mentira ter falhado como desculpa, a pior hora é aquela mais distante do sono – o acaso corre junto com o tempo, rindo da desgraça alheia para desviar a atenção da sua até perceber que ambas são um plágio, uma lorota infeliz que cada um conta para si mesmo e se desculpa de sua estupidez nos outros. Essa insistência na imbecilidade tem salvado muitos sonhos e esperanças de um fim prematuro – conserva o aborto vivo por tempo suficiente para que suas vísceras se desfaçam antes do caminho pelo que pensa estar construindo enquanto chafurda no marasmo da mesmice anestésica se mostre ainda mais imbecil. Dificilmente alguém apresentaria uma justificativa intelectualmente respeitável para acordar mais um dia. Os pontos de vista inspirados pela minha miséria são tão imbecis quanto os inspirados pela felicidade ou qualquer outra sorte de configuração fisiológica – e eles persuadem nossa vaidade a defendê-los com a pretensão de representá-los e falar em seu nome. As expressões artísticas advindas do estado depressivo parecem muito mais ricas e sofisticadas – quando a tristeza é sine qua non, claro que será mais profunda; quando a felicidade é a razão de ser, o que não é, não importa. “há mais profundezas na melancolia” – porque é o meu estado de ser – e é assim que se pensa para a vida, para a morte, pensamentos que sempre giram ao redor de umbigos. A morte é a verdade da tristeza e a da vida, a felicidade. Há mais respostas numa bula que em qualquer biblioteca, e mais fatos, também. Taxista, para a farmácia, por favor – parece que meu umbigo está fora do lugar.
André Díspore Cancian
30/09/2005
 
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